sábado, dezembro 16, 2006

"Às Médicas que assistiram o Meu Pai"

Por Marta Condesso, de Aveiro, na revista XIS do Público, de 25 de Novembro:
Esperei, propositadamente, o passar do tempo, para que não questionassem a lucidez das minhas considerações. Sou filha de um doente oncológico, falecido há um ano. O que se segue não são, portanto, palavras precipitadas (de quem está "louco" com a dor de uma perda recente).Venho, porque me impus este dever, convencida que estou de não falar só por mim, mas também em nome de muitas outras famílias. E na esperança (vontade séria e profunda) de que origine reflexão e mudança.Venho pela distância (inaceitável). Venho pelo desacompanhamento. Venho pela inexistência de relação médico-paciente. Venho pelo sempre pouco tempo. Pela indisponibilidade manifesta. Venho pelo(s) silêncio(s). Venho por uma "parede" difícil de enfrentar (quando as forças eram precisas noutras "frentes"). Venho pelos monossílabos, "gelados", em que nos falavam: em voz baixa, de olhos postos nos papéis ou no écran do computador; depois de intermináveis momentos de indiferença à nossa presença (nunca desnecessária, abusiva, ignorante): nós, ali, ao alto; humildes e em sofrimento.Venho porque ouvir o meu pai (juiz desembargador, portanto, "viciado" na racionalidade, moderação e contenção dos seus juízos) dizer "Eu não hei-de morrer a estas mãos!" foi terrível. E é grave.Estou obviamente consciente do avultado número de doentes; da responsabilidade do vosso trabalho; da escassez do vosso tempo e da excelência do vosso saber científico. Mas não é isso, evidentemente, que está em causa. Falo da Dignidade na doença (da privação dela!), quando mais do que nunca ela é importante. Falo de um grau mínimo de exigência...Refiro-me a toda uma (outra) atitude; a um outro uso do mesmo tempo em consulta: olhar (Olhar nos olhos) é fundamental e básico numa relação que se pretende de confiança; cumprimentar e despedir com um sorriso; revelar uma disposição e um ânimo atentos; transmitir disponibilidade e calma; mostrar interesse e empenho (em vez de um distanciamento terrivelmente constrangedor), não é "leviandade" nem nada tem a ver com a gravidade do problema ou com "falsas esperanças".Exercer Medicina numa área particularmente difícil como é a vossa, em que difíceis serão sempre todos os pacientes (independentemente dos diagnósticos: mais felizes ou menos), só pode obrigar a um relacionamento especial: de mais comprometimento; mais exigente; mais sensível; mais entregue! Estabelecê-lo parece-me uma obrigação profissional. Melhorarem (melhorarem muito, na minha opinião): uma urgência.Há uma percentagem no Sofrimento (todo) do meu pai, por que o vosso comportamento é responsável. E isto é difícil de esquecer... Acrescentar-se a tantos sentimentos "negros e fundos", que já suporta uma pessoa gravemente doente, a sensação de absoluto abandono, de solidão e frieza, em relação ao seu médico, será com certeza negligente.Resta-me lamentar ainda que, com este não-envolvimento (no que respeita à dimensão humana — que tentei expor e que não pode considerar-se um "extra") percam a oportunidade de conhecer pessoas incríveis, raras, maravilhosas (e perdoem-me a parcialidade de acrescentar: como o meu pai), que passam por essas salas (às vezes durante tanto tempo). É uma pena. É uma pobreza. Mas é, acima de tudo, profundamente injusto.Despeço-me, com a tranquilidade do "dever cumprido": escrevendo, tento que não volte a acontecer com ninguém!13 de Novembro de 2006"